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POR UM TRANSFEMINISMO TRANSMASCULINO E NÃO-BINÁRIO

Atualizado: 20 de out. de 2024

Bruno Latini Pfeil; Cauê Assis de Moura; Cello Latini Pfeil; Thárcilo Hentzy; Vita Evangelista


A cada onda feminista, os debates se ampliam e agregam cada vez mais grupos sociais histórica e politicamente marginalizados. Dentro de movimentos feministas, há dinâmicas de apagamento e exclusão que se reproduzem, e que foram e são duramente combatidas por vertentes do feminismo negro, interseccional, decolonial, transfeminismo, dentre outros. Essas dinâmicas não devem se reproduzir nos movimentos que almejamos compor; e, ao identificarmos tal reprodução, devemos enfrentá-la, para fomentar acolhimento e compreensão dos lugares que ocupamos em relação às violências que nos atravessam. Não devemos recuar diante das adversidades, mas tomá-las como instrumento de análise para nos havermos com nosso próprio reflexo.

O transfeminismo é de extrema importância para a agregação de pessoas trans em uma luta comum por direitos. Ao nos depararmos com saberes transfeministas, percebemos a pouca discussão acerca de questões transmasculinas – ausência marcada especialmente pela falta de reconhecimento e visibilidade dos processos de produção de violência e vulnerabilização que incidem em nossas vivências. Desde que Aline Freitas publicou o texto “Ensaio de Construção do Pensamento Transfeminista”, considerado como precursor da discussão no contexto brasileiro, as transmasculinidades estão presentes. Como nos coloca a autora: 


Nosso papel histórico deve ser construído por nós mesmxs. O transfeminio é a exigência ao direito universal pela auto-determinação, pela auto-definição, pela auto-identidade, pela livre orientação sexual e pela livre expressão de gênero. Não precisamos de autorizações ou concessões para sermos mulheres ou homens. Não precisamos de aprovações em assembléias para sermos feministas. […] O transfeminismo é para todxs que acreditam e lutam por uma sociedade onde caibam todos os gêneros e todos os sexos (Freitas, 2005, p. 1 apud Jesus, 2014, p. 249).


Estamos também presentes no emblemático texto “Introdução ao transfeminismo” (2012) escrito por Hailey Kaas. Nele, a autora  delineia alguns pontos para a agenda do transfeminismo, pontuando, enquanto agenda politica do movimento, os direitos de homens trans à gestação e ao aborto seguro. Assim, estamos nitidamente presentes na produção de conhecimento transfeminista. No entanto, como escrevem Peçanha, Jesus e Monteiro (2023, p. 94), “[…] podemos observar como o debate transfeminista, é visibilizado e fomentado por diversas pessoas trans, porém é mais conhecido pelo discurso de travestis e mulheres transexuais”.

Enfatizamos que não há transfeminismo sem transmasculinidades e não-binariedades, sendo, então, fundamental que reconheçamos as contribuições de autores transmasculino/es ao transfeminismo. Pois o nosso apagamento contradiz os princípios do transfeminismo, como movimento plural e anti-transfóbico. Apoiados em  Peçanha, Jesus e Monteiro (2023), propomos pensar a partir do “transfeminismo das transmasculinidades” em um aprofundamento das pautas e demandas transmasculinas. Compreendemos  o  transfeminismo como uma:


[…] linha de pensamento e ação feministra protagonizada por todas as pessoas trans, [que] também abarca as masculinidades trans, que têm muito a ensinar aos modelos tóxicos de masculinidade que falsamente se colocam como os únicos possíveis para os homens (PEÇANHA, JESUS & MONTEIRO, 2023, p. 101).


A cisheteronormatividade que impera em consultórios ginecológicos, lugares de saúde, universidades, núcleos de estudo de gênero, dentre outros campos e espaços, é explicitada no mapeamento “Gravidez, Aborto e Parentalidades nas Transmasculinidades”, organizado por pesquisadores do Instituto Brasileiro de Transmasculinidades e da Revista Estudos Transviades. A pesquisa demonstra que, dentre a população transmasculina que frequenta espaços de saúde, cerca de 49% têm seus pronomes e nome social desrespeitados. Isso não seria pauta do transfeminismo? As violências sexuais que sofremos não são pauta do transfeminismo? A invisibilização das transmasculinidades não é pauta do transfeminismo? O silenciamento de nossas narrativas, tão comum às mulheridades cis e trans, não é pauta do transfeminismo? A imposição da heterossexualidade e da endossexualidade às nossas experiências sexuais e de gênero não é pauta do transfeminismo? O apagamento de nossas produções acadêmicas e não-acadêmicas não é pauta do transfeminismo?

Concomitantemente a esses questionamentos, algo que observamos em movimentos feministas em geral – especialmente naqueles protagonizados pela cisgeneridade e que excluem as transgeneridades, os quais nomeamos cisfeminismos – é a universalização da “masculinidade”, comumente citada como “masculinidade tóxica” de forma universalista e simplista, como se só houvesse uma, ignorando quesitos étnico-raciais, classistas, de sexualidade, e outros aspectos sociais que atravessam as diferentes corporalidades e existências. Universalizar essa noção de “masculinidade” como caráter opressivo de todas as pessoas que transitam pelas esferas das masculinidades significa desprezar as inúmeras masculinidades vulneráveis no sistema patriarcal colonial, masculinidades estas que muitas vezes surgem da própria luta e criticalidade contra-hegemônica e anti-patriarcal.

É fundamental reconhecer a capacidade de todas as pessoas de reproduzir violências estruturais e históricas. Caso contrário, estaríamos recuando diante das adversidades que desejamos enfrentar. Devemos nos responsabilizar pelas violências que somos capazes de reproduzir, justamente para interrompermos o ciclo de perpetuação da opressão. Da mesma forma, também devemos compreender os lugares de vulnerabilidade que ocupamos na estrutura patriarcal colonial. Devemos assumir que pertencer a certo grupo populacional socialmente minorizado não nos isenta da responsabilidade sobre nossas atitudes frente a outros grupos também vulnerabilizados.

A partir de um debate suscitado pelo Coletivo de Artistas Transmasculines (CATS) no Instagram, no começo de novembro/2023, nos motivamos a pensar em terminologias que definam, ainda que de maneira incipiente, as violências que atravessam as transmasculinidades no patriarcado. Tal como pensam Peçanha, Jesus e Monteiro (2023, p. 93), “reconhecendo-se um lugar de masculinidades que é vivido apenas pelas transmasculinidades”, podemos elaborar conceitos que digam respeito às transmasculinidades; termos que designam especificamente as violências que nos atravessam; palavras que reflitam o que sentimos e as maneiras como estamos inseridos em posição de vulnerabilidade na estrutura patriarcal, em nossa ampla diversidade racial, territorial, religiosa, corporal, de classe, sexualidade etc. Dentre os termos que encontramos na discussão, temos: transmisandria, transandrofobia, transmisoginia, transmascfobia, transmasculinofobia, boycetofobia, transsexismo… Tais terminologias não surgiram na provocação do CATS, mas receberam bastante visibilidade, a tal ponto que são, hoje, de nosso conhecimento. Acolhemos tais proposições e enaltecemos aquilo que as motiva: a tentativa de identificar as violências que nos atravessam, de nomear as violências, em meio a tanta invisibilização. Ao observarmos as movimentações, os diferentes posicionamentos e toda a violência gerada em reação à postagem inicial, torna-se imperativo entendermos que a nomenclatura em si importa menos do que aquilo que pretende denunciar – o que não significa que não devamos estar vigilantes sobre as palavras que empregamos, mas que o acolhimento da iniciativa poderia não ter sido esvaziado pelo repúdio à terminologia.

Que nos responsabilizemos ao invés de nos isentarmos, e que nos comprometamos com a promoção de um transfeminismo anti-transmasculinofóbico, que reconheça a pluralidade das experiências transmasculinas, que reconheça nossas narrativas, demandas, vulnerabilidades e produções de conhecimento. E que reconheça a existência da transmasculinofobia como elemento estrutural do patriarcado. Que integremos um transfeminismo que contemple nossas plurais corporalidades.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

JESUS, Jaqueline Gomes de. Gênero sem essencialismo: feminismo transgênero como crítica do sexo. Universas Humanística, Bogotá, n. 78, p. 241-258, jul. 2014. Disponível em: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=79131632011. Acesso em 05 de novembro de 2023. 


KASS, Hailey. Introdução ao Transfeminismo. BlogTransfeminismo, 1 out. 2012. 


PFEIL, Cello Latini. LEMOS, Dan Kaio; GOMES, Enzo; ALGARTE, Fabian; GIULIA, Kaleb; CARVALHO, Murillo Medeiros; PFEIL, Bruno Latini. Gravidez, Aborto e Parentalidade nas Transmasculinidades: um estudo de caso das políticas, práticas e experiências discursivas. Revista Brasileira de Estudos da Homocultura, v. 6, n. 19, jan/abr 2023. Disponível em: https://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/rebeh/article/view/15503. Acesso em: 16 de outubro de 2023.


PEÇANHA, Leonardo Morjan Britto; JESUS, Jaqueline Gomes de; MONTEIRO, Anne Alencar. Trasfeminismo das transmasculinidades: Diálogos sobre direitos sexuais e reprodutivos de homens trans brasileiros. Revista Brasileira de Estudos da Homocultura, v. 06, n, 19, 2023.


COMO CITAR ESSE TEXTO?

PFEIL, B. L.; PFEIL, C. L. Por um transfeminismo transmasculino e não-binário. Revista Estudos Transviades, 2023. Disponível em: https://revistaestudostransviades.wordpress.com/ensaios-colunas/. Acesso em: [inserir data]

 
 
 

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