O PACTO NARCÍSICO DA CISGENERIDADE
- Revista Estudos Transviades RET
- 5 de set. de 2024
- 6 min de leitura
Atualizado: 20 de out. de 2024
Bruno Latini Pfeil; Cello Latini Pfeil
Neste ensaio, objetivamos denunciar aquilo que identificamos como pacto narcísico da cisgeneridade. Tal como Cida Bento (2002) aponta para o pacto narcísico nas dinâmicas da branquitude, pensamos nas dinâmicas de autopreservação da cisgeneridade enquanto estrutura histórica de opressão. Herdeira dos traços da branquitude, e originada da mesma, a cisgeneridade, como demais marcadores sociais universalizados, operam por meio de mecanismos de defesa, no intuito de garantir sua segurança e a dominação (KILOMBA, 2019).
Especialmente em espaços acadêmicos de produção de conhecimento, e também dentro dos estudos de gênero, a cisgeneridade não costuma ser reconhecida, tampouco se reconhece seu caráter histórico e construído. Nomeamos de ofensa da nomeação (PFEIL; PFEIL, 2022) a recusa da cisgeneridade em se reconhecer, abrangendo o reconhecimento de seus impactos sociais, institucionais e políticos. Se a transexualidade é conceituada como uma categoria diagnóstica, nos privando ofensivamente de nossa integridade, a cisgeneridade é apontada como iniciativa de despatologização e desnaturalização. A recusa em se reconhecer, que ocorre por meio da ofensa da nomeação, tem como base um mecanismo de defesa típico do pacto narcísico, tal como observado na branquitude. Da mesma forma, podemos estender as dinâmicas narcísicas perversas a demais marcadores sociais de poder da modernidade/colonialidade, como, por exemplo: a heterossexualidade, a endossexualidade, a ausência de deficiências, o pertencimento a uma classe social abastada, dentre outros. Há, desse modo, dois objetos a serem analisados: o pacto narcísico e a cisgeneridade.
Em um primeiro momento, Cida Bento (2002) pensa no narcisismo por uma ótica freudiana, refletindo sobre a constituição egóica. Conforme a teoria psicanalítica, o aparelho psíquico possui três estruturas: o ego, o id e o superego. O ego seria “a instância psíquica que exerce o controle sobre todos os seus processos parciais, que à noite dorme e ainda então pratica a censura dos sonhos”, escreve Freud (1923/2011, p. 20). O ego opera por meio do princípio de realidade, enquanto o id opera pelo princípio do prazer, das paixões. O ego deriva do id, quando este último não obtém sucesso em adquirir seu objeto de desejo. Assim, o ego surge como alternativa para que o sujeito obtenha satisfação em seus desejos sem, com isso, extrapolar as normas da cultura. Como fuga à melancolia resultante da insatisfação, são promovidas identificações entre o ego e seu objeto de desejo: o ego introjeta, em si, traços do objeto inalcançável, construindo, por sim, o superego. “Enquanto o Eu é essencialmente representante do mundo exterior, da realidade, o Super-ego o confronta como advogado do mundo interior, do Id” (FREUD, 1923/2011); o superego se constitui de censura, culpa, moralidade, punindo o ego pela falta de freios do id. Em resumo, o narcisismo entra nesta questão como um mecanismo egóico de defesa contra as investidas punitivas superegóicas, por meio das identificações. Pelo narcisismo, o sujeito se constitui coletivamente, identifica-se com aqueles que o rodeiam, introjeta traços de seus objetos de desejo e da linguagem por meio da qual o mundo lhe é interpretado.
Nesse sentido, o narcisismo é um componente fundamental da constituição psíquica, pois promove reconhecimento coletivo, autoimagem. Todavia, há uma diferença, como Bento (2002) pontua, entre a formação de uma autoimagem e a eliminação do outro por sua diferença. A exclusão daqueles aos quais não pertencemos ocorre pela desumanização do outro, pois, sem humanidade, torna-se passível de exploração e descarte. É nesse momento que identificamos a projeção como mecanismo de defesa do ego, muito encontrado na formação do que Grada Kilomba (2019) denominou de Outridade. As investidas do id, ao serem projetadas sobre uma figura externa ao ego, impedem que o superego puna o ego em si, pois este volta sua punição à figura externa. O outro, sobre o qual as projeções egóicas são alocadas, torna-se o grande vilão, a representação do mal, configurando, em suma, uma Outridade.
A projeção ocorre por meio da negação: ao negar certo aspecto de si, projeta-o sobre o outro (KILOMBA, 2019). A autora identifica esse processo em práticas colonizatórias, tal como na negação do lugar de violência de marcadores da modernidade: quando pessoas brancas negam sua violência e a deslocam a pessoas negras e indígenas; quando pessoas cisgêneras negam sua violência e a alocam em pessoas trans, como se estas fossem agressivas; e a lista segue. Ao não se reconhecer enquanto tal, ofendendo-se diante de sua própria nomeação, a cisgeneridade se exonera de sua normatização e de sua transfobia naturalizada.
Nesse sentido, se, antes, o superego punia o ego, após a projeção no outro, o superego pune a Outridade. Desse modo, o sujeito negro torna-se um agresor e o branco torna-se a vítima; o sujeito trans torna-se uma ameaça à família supostamente tradicional e a pessoa cis torna-se a vítima de uma ideologia de gênero terrível, por exemplo. É pela negação que se cria a Outridade, criando “fantasias brancas sobre o que a negritude deveria ser” (KILOMBA, 2019, p. 38), fantasias cisgênera sobre o que a transexualidade deveria ser, pautadas em um imaginário moderno/colonial que não se assume enquanto tal.
A gênese do pacto narcísico opera, portanto, por meio de um mal-estar provocado pela incongruência entre a projeção colonial e o indivíduo tido como Outro. Por serem distorções da realidade, as projeções coloniais não retratam o Outro propriamente dito, em sua singularidade, mas na verdade o distorcem. Embora a diferenciação entre o ego e o outro seja uma etapa fundamental da constituição egóica, é a pretensão de eliminar o Outro que caracteriza o pacto narcísico. Percebe-se, com isso, dinâmicas de outremização, como mostra Toni Morrison (2019), em que sujeitos que não refletem a universalidade do que se compreende como ‘normal’ são dispostos neste lugar marginalizado de anomalia.
Nota-se, assim, a dificuldade com que pessoas cis se deparam ao serem nomeadas enquanto tais. Ao mesmo tempo, percebe-se o quão natural se tornou nomear, por pessoas cis, a transexualidade. A isso, Vergueiro (2015, p. 51) escreve que a categoria de cisgeneridade “teve e tem seu uso contestado ou ignorado a partir de dispositivos de poder que constroem os gêneros inconformes os gêneros inconformes como os únicos demarcáveis […] fazendo do silêncio descritivo a fundação da cisgeneridade”. Embargada em silêncio, a cisgeneridade permanece universal e natural, perpetuando seu pacto narcísico do silêncio – que não é assim tão silencioso. É por meio desse silêncio descritivo que a cisgeneridade compactua. Silenciando seu nome, nos nomeia, sem deixar rastros. Assim escreve Cida Bento:
O silêncio capturado neste trabalho, a omissão, a distorção do lugar do branco na situação das desigualdades raciais no Brasil tem um forte componente narcísico, de autopreservação, porque vem acompanhado de um pesado investimento na colocação enquanto grupo como grupo de referência da condição humana. (BENTO, 2002, p. 31)
Se pensamos nessa lógica tendo a cisgeneridade como objeto de pesquisa, podemos dizer que pessoas cisgêneras, por meio da omissão, distorcem sua localização social, seus impactos estruturais, utilizando-se de mecanismos narcísicos de autopreservação e de extermínio do Outro. E isso ocorre pois a cisgeneridade compõe o grupo de referência da condição humana.
Precisamos nomear o pacto narcísico da cisgeneridade em seus esforços para perpetuar a nomeação patologizante e medicalizante de pessoas trans, ao passo em que se ofende tremendamente ao ser nomeada. Pelos mecanismos de defesa do ego, a cisgeneridade se defende de sua nomeação. A repressão, um dos mecanismos identificados por Kilomba (2019, p. 42), diz respeito à “defesa pela qual o ego controla e exerce censura ao que é instigado como uma verdade “desagradável””. Como exemplo, percebemos a agressão pública de especialmente homens cisgêneros contra travestis. Reprime-se no Outro aquilo que se repele em si. O colonizado se torna tanto objeto de extermínio quanto de desejo, pois reflete os desejos que o colonizador reprime. Observa-se uma dinâmica de hiperssexualização e atribuição de agressividade a pessoas negras, o que também se reflete no caso de pessoas trans. A destruição e a satisfação compõem a repressão: para que o desejo cesse, é preciso que seu objeto seja destruído. Nesse cenário, a culpa impera, instituindo a moralidade superegóica e fomentando o ódio contra o Outro.
Outro mecanismo também observado na cisgeneridade é a negação, quando pessoas trans são excluídas de espaços feministas – os quais denominamos cisfeministas. O cisfeminismo, tal qual o feminismo branco, se mostram como universais, como se englobasse todas as corporalidades, e se omite em relação a violências direcionadas a pessoas trans, negras, indígenas. As cisfeministas recorreriam ao narcisismo como estratégia de autopreservação, percebendo pessoas trans como ameaça à sua luta. Percebemos como os mecanismos de defesa do ego explicitados por Kilomba (2019) se espelham nas dinâmicas discriminatórias da cisgeneridade para com a dissidência de gênero. Que nomeemos e identifiquemos o pacto narcísico da cisgeneridade e suas implicações.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENTO, Maria Aparecida S. Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. Tese (doutorado) – Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade. São Paulo: s.n., 2002.
FREUD, Sigmund. O eu e o id. In: Obras completas, volume 16: O eu e o id, “autobiografia” e outros textos (1923-1925). Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. 1ª ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
PFEIL, Bruno Latini; PFEIL, Cello Latini. A ofensa da nomeação. In.: MIRANDA, Eduardo O.; SANTOS, Marta Alencar dos; CASTELEIRA, Rodrigo Pedrosa (Orgs.) Enviadescer a Decolonialidade. Salvador: Editora Devires, 2022.
MORRISON, Toni. A origem dos outros: seis ensaios sobre racismo e literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
VERGUEIRO, Viviane. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia, Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos, Salvador, 2015.
COMO CITAR ESSE TEXTO?
PFEIL, B. L.; PFEIL, C. L. O pacto narcísico da cisgeneridade. Revista Estudos Transviades, 2023. Disponível em: https://revistaestudostransviades.wordpress.com/ensaios-colunas/. Acesso em: [inserir data]
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