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Entrevista com Danilo Santos Nascimento

Experiência Educacional Antes do Encarceramento

 

  1. Você poderia descrever sua trajetória educacional antes de entrar no sistema prisional?

Antes de entrar no sistema prisional, concluí o ensino médio e iniciei minha formação superior em duas áreas distintas. Ingressei na faculdade de Administração, onde cursei dois meses, e posteriormente, iniciei a graduação em Música, completando um semestre. Embora não tenha concluído esses cursos, essas experiências ampliaram minha visão acadêmica e profissional, contribuindo para meu desenvolvimento pessoal e meu interesse por diferentes áreas do conhecimento.

 

  1. Houve algum desafio específico que você enfrentou em sua educação antes do encarceramento, relacionado à sua identidade de gênero?

Na época em que concluí minha formação, há quase 20 anos, a compreensão sobre identidade de gênero não era tão difundida como é hoje. Eu não entendia por que sentia que estava no corpo errado, pois não se falava tanto sobre pessoas trans. Por isso, não enfrentei desafios educacionais diretamente ligados à minha identidade de gênero, já que ainda não tinha o conhecimento necessário para nomear ou entender o que sentia. Meu processo de autodescoberta aconteceu ao longo dos anos, conforme fui tendo acesso a mais informações e referências sobre pessoas trans.

 

  1. Você recebeu apoio de instituições ou pessoas (amigos, professores) durante esse período? Como foi essa experiência?

Durante esse período, não recebi apoio específico em relação à minha identidade de gênero, pois eu mesmo ainda não compreendia completamente o que sentia. Na época, falava-se mais sobre orientação sexual do que sobre identidade de gênero, e eu me identificava como lésbica, pois sento atração pelo sexo feminino. Como não havia tanta informação sobre homens trans, essa questão não era discutida no ambiente educacional ou social ao meu redor. No entanto, tive pessoas que me apoiaram de outras formas, como amigos e familiares que incentivaram meu aprendizado e desenvolvimento. Tive um professor em um curso profissionalizante de serigrafia, o qual era gay (o mesmo já é falecido), que me orientava a ter cuidado, pois ele tinha medo referente a violência físicas que poderia sofrer nas ruas. Ainda que não diretamente ligado à minha identidade de gênero, esse suporte foi importante para minha trajetória e para que, mais tarde, eu pudesse compreender melhor quem sou.


 

Experiência no Sistema Prisional

 

  1. Como foi sua experiência educacional dentro do cárcere? Você teve acesso a cursos, aulas ou atividades educativas?

Durante meu período no sistema prisional, meu acesso à educação foi bastante limitado. Tinha permissão para frequentar a biblioteca apenas uma vez por semana, mas o acervo era composto, em sua maioria, por livros antigos e romances, sem muita diversidade de conteúdo.


Dentro do sistema, participei de um curso de corte e costura, uma das poucas oportunidades de aprendizado oferecidas. Além disso, uma vez por ano, a Secretaria de Educação aplicava a prova do EJA, e eu me envolvia ativamente nesse processo, auxiliando outras mulheres com reforço para a prova.


Por iniciativa própria, desenvolvi uma forma alternativa de alfabetização para as internas, utilizando o ponto cruz como ferramenta pedagógica. Percebi que, ao bordar uma letra, as mulheres passavam um longo tempo observando seu formato, o que ajudava na fixação mental. Assim, fui reforçando, letra por letra, o reconhecimento do alfabeto. Além disso, a necessidade de contar os pontos no bordado possibilitou o ensino prático da matemática, tornando o aprendizado mais acessível e intuitivo para muitas delas.


Somente após minha saída do cárcere, tomei conhecimento de que a prova do Enem também foi aplicada na unidade. Uma das internas obteve uma excelente pontuação e chegou a ser inscrita em uma instituição de ensino superior. No entanto, infelizmente, não conseguiu cursar devido a dificuldades relacionadas à segurança e logística, um reflexo dos desafios estruturais que ainda limitam o acesso à educação para pessoas privadas de liberdade.


No Brasil, a Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984) garante aos presos o direito à educação, incluindo a possibilidade de remição de pena por meio do estudo. O Enem PPL (Exame Nacional do Ensino Médio para Pessoas Privadas de Liberdade) é uma iniciativa importante para possibilitar que detentos realizem o exame dentro do sistema prisional, mas a falta de infraestrutura e suporte ainda impede que muitos tenham acesso real às oportunidades educacionais que a lei prevê.


  1. As instituições prisionais ofereciam apoio específico para pessoas trans? Se sim, qual? Se não, como você se sentiu em relação a isso?

Na época em que estive no sistema prisional, não havia nenhum tipo de apoio específico para pessoas trans. Embora essa questão não estivesse diretamente ligada à parte educacional, impactava profundamente meu bem-estar. Aproximadamente 70% dos profissionais não respeitavam minha identidade de gênero, me chamando constantemente pelo nome de batismo, o que tornava a experiência ainda mais difícil. Por outro lado, havia um grande respeito por parte das detentas, o que tornava o ambiente um pouco mais suportável.


No instrumental do próprio presídio, havia um campo onde perguntavam se a pessoa tinha algum apelido, mas isso era entendido apenas como um "vulgo" pelo qual fosse conhecida, sem qualquer reconhecimento da identidade de gênero. Além disso, não me foi permitido usar binder, e embora eu utilizasse cuecas, sempre que ocorriam operações de revista conduzidas pelo Estado – e não pelos funcionários do presídio –, todas as cuecas eram recolhidas sob a justificativa de que se tratava de uma unidade prisional feminina.


A falta de reconhecimento e respeito institucional em relação à minha identidade de gênero tornou a vivência no cárcere ainda mais desafiadora. A ausência de políticas inclusivas e o desrespeito sistemático demonstram como ainda há um longo caminho a ser percorrido para garantir direitos básicos à população trans dentro do sistema prisional.


  1. Você encontrou barreiras ou preconceitos dentro do ambiente escolar do cárcere? Como lidou com isso?

Percebia que o próprio sistema não criava um ambiente verdadeiramente inclusivo. Para lidar com essas dificuldades, me concentrei em criar alternativas dentro das possibilidades que tinha. Desenvolvi um método de alfabetização usando ponto cruz, o que me permitiu contribuir para a educação das mulheres ao meu redor e, ao mesmo tempo, ocupar minha mente de forma produtiva. O respeito que conquistei entre as internas também foi essencial para suportar a falta de reconhecimento por parte do sistema.


Reflexões sobre a Identidade de Gênero e Educação


  1. De que forma sua identidade de gênero influenciou suas experiências educativas dentro e fora do sistema prisional?

Minha identidade de gênero teve um impacto significativo nas minhas experiências educativas, tanto dentro quanto fora do sistema prisional. Dentro do cárcere, o desrespeito constante à minha identidade, com profissionais me chamando pelo nome de batismo e a imposição de regras que não levavam em conta minhas necessidades como pessoa trans, tornou o ambiente educacional ainda mais desafiador. No entanto, foi justamente nesse contexto de adversidade que encontrei a minha força. Minha resiliência me permitiu não apenas sobreviver a essas dificuldades, mas também transformar a realidade ao meu redor.


Dentro do sistema, busquei alternativas para contribuir com o aprendizado das outras internas, criando métodos criativos de alfabetização, como o uso do ponto cruz. Essa abordagem me permitiu demonstrar, de forma prática, que a educação pode ser acessível a todos, independentemente das limitações impostas por um sistema que, muitas vezes, exclui as pessoas trans. Minha vontade de aprender e ensinar se manteve firme, e isso refletiu minha crença de que, com determinação e coragem, podemos ser quem queremos ser e alcançar nossos objetivos.


Fora do sistema, minha identidade de gênero continuou a moldar minha trajetória, mas com mais acesso a informações e apoio. Aprendi a abraçar minha história e a transformar os desafios em oportunidades de crescimento. Minha experiência educacional foi marcada pela resiliência e pela convicção de que, independentemente dos obstáculos, podemos buscar a realização dos nossos sonhos e ser protagonistas de nossas próprias vidas. Essa jornada me ensinou que a educação não é apenas uma ferramenta de aprendizado, mas também um caminho de libertação e transformação pessoal.


  1. Você participou de algum programa voltado para questões de gênero e diversidade durante o encarceramento? Como foi essa experiência?

Na época em que estive no sistema prisional, não havia nenhum programa voltado especificamente para questões de gênero e diversidade. No entanto, participei de um evento marcante relacionado ao livro Outras Vozes, que foi escrito dentro do sistema prisional feminino de Sergipe. Esse projeto foi desenvolvido por Araripe Coutinho, que foi essencial na organização e apoio para que as histórias das mulheres presas fossem ouvidas e compartilhadas. Tive a honra de fazer parte da escrita deste livro, o que me permitiu contribuir com a visibilidade das nossas experiências e desafios através da poesia.


Durante o evento, tive a oportunidade de ouvir a fala de Rosa Reis, do coletivo Greta Garbo, que é um grupo formado por mulheres trans e ativistas que lutam pelos direitos das pessoas LGBTQIA+ e pela inclusão das identidades de gênero no discurso político e social. As palavras de Rosa me tocaram profundamente e, naquele momento, decidi que, quando saísse, procuraria Rosa Reis para aprender mais sobre sua militância e para me engajar nas causas LGBTQIA+. Isso foi um ponto de virada importante para mim, pois percebi a importância de lutar pelos direitos da comunidade LGBTQIA+ e de me posicionar ativamente na defesa de uma sociedade mais inclusiva.


  1. Que mudanças você gostaria de ver nas políticas educacionais dentro das prisões para melhor atender pessoas trans?

Como homem trans que passou pelo sistema prisional, posso afirmar que a falta de políticas públicas voltadas para a educação de pessoas trans nas prisões foi uma das maiores barreiras enfrentadas. Na época em que estive encarcerado, não havia nenhuma estrutura ou programa educacional específico que atendesse às necessidades dessa população, o que gerava um isolamento ainda maior. A minha identidade de gênero não era respeitada, e a ausência de programas de apoio ou de cursos adaptados dificultava o acesso à educação de forma plena e inclusiva. Isso, além de me privar de um aprendizado de qualidade, também contribuía para um ambiente de exclusão e desvalorização.


Hoje, com a minha formação em Serviço Social e duas pós-graduações, vejo de maneira ainda mais clara a importância de políticas educacionais inclusivas dentro do sistema prisional, especialmente para pessoas trans. A educação no cárcere precisa ser estruturada de forma a respeitar as identidades de gênero, oferecendo programas que garantam a inclusão, a formação e a remição de pena por meio de estudo, mas com uma perspectiva que reconheça as especificidades de cada indivíduo, incluindo aqueles que são trans.


Uma das principais mudanças que gostaria de ver seria a criação de programas educacionais específicos para pessoas trans dentro das unidades prisionais. Isso incluiria a capacitação de educadores para lidar com as questões de identidade de gênero, oferecendo um ambiente seguro e acolhedor para que essas pessoas possam acessar a educação sem o medo de discriminação ou violência. Além disso, seria essencial que as políticas públicas garantissem o uso de nomes sociais, a escolha do vestuário adequado e o respeito à identidade de gênero nas atividades educacionais, de forma que cada pessoa possa aprender e se desenvolver sem ser desrespeitada em sua identidade.


Atualmente, existem algumas iniciativas que buscam atender a essa demanda. Por exemplo, o Exame Nacional do Ensino Médio para Pessoas Privadas de Liberdade (Enem PPL), que permite que detentos, incluindo pessoas trans, façam o exame dentro do sistema prisional. Em algumas unidades, há a implementação de cursos de formação continuada, oferecidos pelo Sistema de Educação do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), com foco em temas como alfabetização e qualificação profissional. Contudo, as políticas ainda são muito limitadas e não há uma rede estruturada para garantir o atendimento integral das necessidades educacionais das pessoas trans dentro do cárcere.


Além disso, algumas unidades prisionais estão começando a implementar programas de acompanhamento psicológico e social voltados para a população trans, mas esses serviços ainda são incipientes e restritos a algumas regiões. A inclusão da diversidade de gênero na formação de agentes prisionais e educadores também precisa ser mais enfatizada, para que, assim, se crie um ambiente verdadeiramente inclusivo, onde pessoas trans possam estudar, se desenvolver e ter suas identidades respeitadas.


Minha experiência e minha formação acadêmica me fazem acreditar que a educação dentro do sistema prisional pode ser um caminho de transformação, mas ela precisa ser inclusiva e respeitosa com todas as identidades de gênero, especialmente a população trans. O Brasil ainda precisa avançar muito para que pessoas trans no cárcere tenham acesso à educação de qualidade, com políticas públicas que garantam o direito à educação e à dignidade.


Experiência Pós-prisão

  1. Após cumprir sua pena, como foi sua reintegração ao sistema educacional? Enfrentou dificuldades?

Após cumprir minha pena, minha reintegração ao sistema educacional foi marcada por desafios e aprendizados. Ao sair do sistema prisional, procurei o Conselho da Comunidade na Execução Penal de Sergipe, que tem como objetivo auxiliar na reintegração de pessoas que cumpriram pena, oferecendo orientações e encaminhamentos para cursos profissionalizantes e oportunidades de emprego. O Conselho da Comunidade na Execução Penal foi fundamental nesse processo, direcionando-me para cursos como Pedreiro Polivalente pelo Senai e Conservação e Limpeza de Ambientes no Senac. Esses cursos, embora importantes, me causaram uma sensação de inquietude, pois, na minha visão, as opções de formação para egressos eram limitadas, principalmente no que se referia ao campo acadêmico. Não desmereço essas profissões, mas acredito que seria mais enriquecedor se houvesse uma oferta mais ampla, com cursos voltados para outras áreas de interesse e desenvolvimento intelectual.


Além disso, por meio do CCEP, fui encaminhado para um trabalho na Embrapa Tabuleiros Costeiros, onde atuei como auxiliar de manutenção no programa Recomeçar, uma iniciativa que visa proporcionar a reintegração dos egressos por meio da oferta de experiências de trabalho e capacitação profissional. Esse programa tem como objetivo a inclusão social dos ex-detentos, proporcionando uma oportunidade de recomeço por meio de atividades ligadas ao desenvolvimento rural e à pesquisa, além de promover a capacitação técnica e prática para esses trabalhadores. Trabalhar na Embrapa foi uma experiência valiosa, pois pude contribuir para a manutenção de instalações e equipamentos, enquanto me adaptava ao mercado de trabalho.


Simultaneamente a essa experiência profissional, decidi estudar para o Enem, com o apoio do CCEP, que me forneceu materiais e orientações. Fui motivado pela necessidade de expandir meus horizontes e explorar novas possibilidades acadêmicas. Concluí o exame com uma boa pontuação, o que me abriu portas para escolher outras áreas de estudo. Optando por Serviço Social, fiz essa escolha consciente, pois entendia as diretrizes dessa área e como ela poderia me ajudar a potencializar meu conhecimento e atuação no campo dos direitos humanos, principalmente na luta por reconhecimento e respeito às identidades de gênero, como a de homens trans, e também no que se refere ao sistema prisional, área em que minha vivência pessoal me proporcionou uma compreensão profunda.


A escolha pelo Serviço Social não foi apenas uma decisão acadêmica, mas uma maneira de direcionar minha trajetória profissional para algo que realmente me permitisse impactar positivamente a vida de outras pessoas que, assim como eu, enfrentam desafios relacionados à marginalização e ao sistema prisional. Acredito que a formação e o trabalho na área de Serviço Social podem me proporcionar ferramentas para atuar na promoção de políticas públicas que atendam melhor a população trans e também nas questões de reintegração dos egressos, criando caminhos mais inclusivos e justos para todos.


  1. Você está atualmente em alguma atividade educativa ou profissional? Como se sente em relação a isso?

Atualmente, não estou estudando formalmente, embora tenha o desejo de fazer um mestrado, o que sinto ser um desafio devido às dificuldades de acesso. Contudo, estou bastante envolvido em atividades educacionais e sociais que me proporcionam uma enorme satisfação e sentido de propósito.


Sou facilitador no Programa Alfabetização de Jovens e Adultos nas Periferias, uma iniciativa voltada para a inclusão educacional de jovens e adultos que vivem em áreas periféricas, oferecendo a eles a oportunidade de concluir o ensino fundamental e médio. O programa visa superar as desigualdades educacionais, promovendo o acesso ao conhecimento e à formação crítica, essenciais para a transformação social. Essa experiência tem sido muito enriquecedora, pois me permite atuar diretamente no processo de alfabetização, ajudando a construir uma educação mais inclusiva e acessível para aqueles que, muitas vezes, não têm acesso a instituições educacionais formais.


Além disso, sou responsável pela escrita e execução do projeto Pontos Que Transformam, que trabalha com alfabetização, geração de renda e resgate da cultura através do ponto cruz. Esse projeto tem como objetivo capacitar pessoas por meio do artesanato, oferecendo uma forma de expressão cultural e geração de renda sustentável. Através do ponto cruz, ensino não apenas técnicas de bordado, mas também conceitos de educação financeira e empreendedorismo, com o intuito de empoderar os participantes. O projeto foi contemplado em dois editais: o FICC (2023) e a Lei Paulo Gustavo (2024), o que possibilitou expandir suas atividades e alcançar um público maior.


Essas atividades têm me proporcionado uma grande realização, pois além de contribuir com a formação de outras pessoas, também tenho a oportunidade de impactar positivamente a comunidade, especialmente por meio da promoção da autonomia e da valorização das identidades culturais. Estou muito satisfeito com essas experiências, embora o desejo de continuar meus estudos ainda seja uma meta para o futuro. O que me move atualmente é poder compartilhar o conhecimento e a experiência adquirida, ao mesmo tempo que continuo aprendendo e crescendo com as pessoas com as quais me relaciono nesses projetos.


  1. Quais são seus objetivos educacionais ou profissionais para o futuro?

Meus objetivos educacionais e profissionais para o futuro são variados e desafiadores, mas têm um propósito claro de continuar minha jornada de aprendizado, transformação pessoal e contribuição para a sociedade.


Primeiramente, tenho o desejo de fazer um mestrado, o que me permitirá aprofundar meus conhecimentos e expandir minha atuação no campo do Serviço Social, área em que tenho grande interesse e onde acredito poder fazer uma diferença significativa, especialmente nas questões relacionadas à população trans e à reintegração de pessoas egressas do sistema prisional. No entanto, sei que o caminho para alcançar esse objetivo não será fácil, principalmente por causa das dificuldades de acesso, mas estou determinado a encontrar maneiras de superar essas barreiras.


Além disso, um dos meus grandes projetos pessoais é escrever um livro autobiográfico. Tenho muito a compartilhar sobre minha trajetória, os desafios que enfrentei e as lições que aprendi ao longo dos anos, tanto dentro quanto fora do sistema prisional. Acredito que minha história pode inspirar outras pessoas, principalmente aquelas que vivem em situações de marginalização ou enfrentam obstáculos por causa de sua identidade de gênero. Também tenho vontade de produzir um documentário, pois acredito que a imagem e o relato audiovisual podem alcançar mais pessoas e gerar ainda mais impacto. Esse documentário poderia contar minha história, bem como a de outras pessoas que passaram por experiências semelhantes, destacando a importância da inclusão, respeito e superação.


Profissionalmente, gostaria muito de voltar a atuar em uma instituição como assistente social, onde eu possa aplicar o conhecimento adquirido na minha formação e nas minhas experiências de vida. No momento, estou atuando como cuidador social, o que tem me proporcionado um aprendizado valioso sobre o cuidado e a atenção às necessidades de pessoas em situação de vulnerabilidade, mas meu objetivo é seguir em frente, buscando um espaço em que possa trabalhar diretamente com políticas públicas, advocacy e ações que impactem positivamente a vida de pessoas em contextos de exclusão social.


Considerações Finais

  1. Você gostaria de compartilhar algo que não foi abordado nas perguntas anteriores?

Quando estava no período de estágio obrigatório, ouvi um comentário que me marcou profundamente e me causou muita indignação: 'Olha para o Danilo, nem parece que já foi preso' e 'Porque você fez Serviço Social, se você diz que é homem, e a maioria quem cursa é mulher'. Essas palavras mexeram comigo de uma forma muito forte, porque além de questionarem minha identidade de gênero, ainda reforçavam um estigma que muitas pessoas têm sobre quem passou pelo sistema prisional. A transição para o curso de Serviço Social, que eu fiz com tanto empenho e dedicação, era um reflexo do que eu acreditava ser minha missão: contribuir para a sociedade e lutar pelos direitos de quem mais precisa, sem deixar que o passado me definisse.


Esses comentários foram duros. Em muitos momentos, me senti desvalorizado e sem apoio. Eu já enfrentava diversos problemas pessoais e emocionais, e essas palavras pesaram ainda mais. Cheguei a pensar em desistir, em largar tudo, em abandonar meu sonho de atuar como assistente social. Tudo parecia pesado demais, e, infelizmente, essa pressão interna me levou a um momento muito sombrio, quando tentei o suicídio.


Foi uma fase extremamente difícil, onde me vi completamente desorientado e sem forças para seguir em frente. Mas, ao mesmo tempo, essa tentativa de desistir de tudo foi um divisor de águas. Foi quando percebi o quão forte eu realmente era, que minhas dificuldades não me definiriam. Decidi que não ia me deixar vencer pelo preconceito e pela intolerância. Ao contrário, isso me impulsionou ainda mais a continuar a caminhada, por mim e por todos que, assim como eu, enfrentam barreiras pela sua identidade.


Sei que a sociedade precisa entender que não importa de onde viemos, nem o que enfrentamos, o que importa é quem somos agora e o que podemos fazer pelo futuro. Eu sou um homem trans, passei por momentos difíceis, mas estou aqui, lutando, me formando, me superando, e seguindo meu propósito de lutar por uma sociedade mais justa, inclusiva e livre de preconceitos.


  1. Como você acredita que as experiências de pessoas trans que estiveram no sistema prisional podem ajudar a informar políticas públicas ou práticas educativas?

Como homem trans que passou pelo sistema prisional e, posteriormente, se formou em Serviço Social, acredito que as experiências de pessoas trans que estiveram no sistema prisional são essenciais para informar políticas públicas e práticas educativas mais inclusivas e respeitosas. A vivência de pessoas trans dentro do cárcere é, infelizmente, frequentemente marcada pela violência, invisibilidade e falta de compreensão sobre as suas necessidades específicas. Essas experiências precisam ser ouvidas e consideradas para que possamos construir um sistema mais justo e acolhedor.


Durante meu tempo no sistema prisional, uma das maiores dificuldades que enfrentei foi a falta de respeito pela minha identidade de gênero. Não havia qualquer política ou estrutura voltada para a população trans, o que me fez sentir-me marginalizado e invisível dentro do próprio sistema de justiça. A ausência de uma abordagem que compreendesse e respeitasse as questões de gênero trouxe muitos desafios, como a recusa em me chamarem pelo nome social, o uso de roupas e objetos inadequados ao meu gênero, e a constante violação de minha identidade. Isso reflete um problema estrutural, onde a falta de políticas públicas voltadas para a inclusão e respeito à diversidade de gênero tem sérias consequências na vida das pessoas trans dentro do cárcere.


A experiência que vivi me fez entender, ainda mais profundamente, a importância de políticas públicas que abordem as especificidades da população trans, especialmente dentro do sistema prisional. Como assistente social formado pós-sistema, percebo que é fundamental que qualquer política educacional ou de reabilitação no sistema prisional esteja alinhada ao respeito à identidade de gênero e à inclusão de pessoas trans. Precisamos de espaços de escuta e formação para profissionais do sistema penitenciário, de modo a promover um tratamento mais digno e humanizado. A educação, especialmente, deve ser um vetor de transformação, e isso inclui a capacitação de todos os envolvidos para respeitar e apoiar as pessoas trans em sua jornada dentro e fora do sistema.


Além disso, a criação de programas específicos para pessoas trans, que considerem suas experiências de vida e identidades de gênero, pode contribuir significativamente para a reintegração dessas pessoas à sociedade. Durante o processo de ressocialização, é necessário que as atividades e cursos oferecidos dentro do sistema prisional sejam pensados de forma inclusiva, levando em consideração as diversas realidades e necessidades das pessoas trans.


Como assistente social, acredito que as políticas públicas também devem garantir o acesso a serviços de saúde mental e apoio psicossocial para pessoas trans dentro do sistema, considerando o impacto das violências emocionais e físicas que muitas vezes enfrentam. A educação e o apoio psicológico têm um papel crucial na reintegração dessas pessoas e na redução de comportamentos de risco, além de contribuir para a construção de um sistema prisional mais humanizado e focado na ressocialização real.


Em resumo, as experiências vividas por pessoas trans no sistema prisional devem ser a base para a construção de políticas públicas mais inclusivas, que respeitem a identidade de gênero e promovam o acesso a educação, saúde e reintegração de maneira digna. Como alguém que passou por isso, acredito que podemos e devemos lutar por essas mudanças, para que outras pessoas trans, como eu, possam viver com mais dignidade e oportunidades de transformação.


Encerramento

Gostaria de agradecer profundamente por esta oportunidade de compartilhar minha história e minhas reflexões. Cada experiência vivida, por mais difícil que tenha sido, contribuiu para que eu me tornasse a pessoa que sou hoje. Agradeço por cada desafio, pois foram eles que me ensinaram a importância da resiliência, da luta por dignidade e, sobretudo, pela construção de um espaço mais inclusivo e justo para todos, especialmente para as pessoas trans.


Ao refletir sobre minha trajetória, entendo que as dificuldades não nos definem, mas sim a forma como escolhemos enfrentá-las. Acredito que a educação, o respeito à diversidade e a inclusão de pessoas trans no sistema prisional e na sociedade como um todo são fundamentais para que possamos, juntos, construir um futuro mais igualitário.


Sei que a luta é longa, mas não podemos desistir. Continuarei caminhando, como homem trans e profissional da área social, buscando fazer a diferença e mostrar que somos capazes de alcançar nossos objetivos, independentemente das barreiras impostas. Que minha história possa inspirar outras pessoas a acreditar em seu potencial e a lutar por um mundo mais acolhedor para todos, sem exceções.

 








 
 
 

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ISSN 2764-8133

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